Por Fernanda Passos
Linguinha era uma pug baixinha, (muito) gordinha, fofinha e mestra em dar aos outros o que não souberam lhe dar. Chegou para mim machucada, desidratada, desnutrida, com piometra, não confiava em ninguém. Resgatei-a de um canil.
Com muita paciência ela foi entendendo que eu estava ali para amá-la e, com muito custo, ela me deu seu coração. E depois disso não parou mais.
Entramos para o Cão Terapeuta em 2012. E ela logo se apaixonou pelo seu trabalho. Aos sábados, quando tínhamos visita, sabia que iria trabalhar assim que eu pegava sua mochilinha. E ao chegar nos arredores da Morada São João, a instituição que atendíamos, ficava eufórica. Na Morada estávamos acostumadas a trabalhar com idosos, Linguinha se revezava no colo de muitos deles. Era difícil resistir aos seus olhos imensos e doces. Mesmo correndo o risco de adquirirem uma hérnia, ninguém resistia à gordinha.
Certo dia, chegou um e-mail recrutando voluntários para uma visita extra, em comemoração ao Dia das Crianças, em um hospital. Como tínhamos disponibilidade, resolvi nos oferecer para essa visita. E lá fomos nós. “Filha, hoje vamos pra um lugar diferente, tá! Lá é um hospital, com crianças, não são os nossos ‘véinhos’. Comporte-se, hein!” – sim, fui conversando com ela. E que atire a primeira pedra aquele que nunca bateu um papo com seu bichinho.
Chegamos no hospital, Linguinha sempre a postos, toda animada ao ver os outros cães. Logo na entrada percebo uma particularidade: as crianças tinham paralisia cerebral. Fiquei um pouco tensa. Primeiro pela minha dificuldade em lidar e segundo com a reação da Linguinha. Como ela reagiria às crianças? Entramos em um local que parecia ser uma brinquedoteca. Linguinha parecia tranquila, confortável, até um pouco ansiosa para chegar mais perto das crianças. Eu é que estava resistindo um pouco. Depois de algum tempo percebi que uma criança, acompanhada de quem parecia ser sua fisioterapeuta, ficava sozinha, um pouco isolada até. Os cães chegavam perto, mas a criança não demonstrava interesse, mesmo com as investidas da fisioterapeuta. Fiquei observando e pensando que talvez a criança não gostasse mesmo dos cães.
Em dado momento, Linguinha foi até essa criança. Tentando disfarçar minha preocupação em não incomodar o pequeno paciente, tentava afastar a gordinha. “Guini, vai devagar! Você perguntou se nosso amigo quer brincar?” O menino começou a se agitar e a fisioterapeuta um pouco tensa: “Devagarzinho, meu amor. Ela é pequenininha.” “Moça, ela não morde? Ele segura forte…” – ela perguntou. E eu: “Não, fica tranquila, ela tá acostumad…” Quando vi, Linguinha já estava deitada aos pés do garotinho, que vocalizava, agitava o corpinho e segurava o couro molinho no pescoço dela. E puxou como quem puxa um pedaço de lycra. Eu, completamente tensa, me encolhendo e sentindo dor por ela. E ela… imóvel. Com a carinha plácida. A serenidade no olhar de quem estava recebendo o carinho mais suave do mundo. A fisioterapeuta tentava, em vão, fazer ele soltar a coitada. Eu, com carinho, tentava pegar na mãozinha dele pra que ele fosse mais de leve. Sem sucesso. E ela… tranquila. Quando olhei para sua carinha percebi o olhar de “tá tudo bem, mãe”. Entendi que estava mesmo.
Acabou a visita. Nos despedimos. A pobre fisioterapeuta me pedia tantas desculpas e eu só conseguia sorrir e dizer que estava tudo bem, que não se preocupasse. Linguinha levantou e saiu serelepe, como se estivesse orgulhosa do que fez. Caminhamos alguns passos, pegamos o carro no estacionamento. Assim que a pequena terapeuta entrou, sentou e me olhou com aquela carinha esperta e roncadeira. E eu caí no choro. Liberei tudo o que havia segurado lá dentro. Poucos minutos depois, Linguinha capotou, dormiu. E roncou. Roncou até chegar em casa. Desceu do carro, bebeu água, cumprimentou as irmãs caninas e capotou de novo. Dormiu como nunca vi. Alguns dias depois recebi um feedback super positivo da nossa visita, e fiquei sabendo que aquele garotinho não se expressava daquela maneira há muito tempo. Senti muito orgulho da minha pequerruchinha, mestra em dar aos outros o que não souberam lhe dar.
Nesse dia, eu entendi um pouco mais sobre o papel desses seres na Terra, do nosso papel como tutor e do papel do Instituto Cão Terapeuta. Entendi que somos todos instrumentos a serviço do amor.
P.S.: Linguinha partiu para o céu dos cachorros em abril de 2016. Mas a doçura, a língua de fora e o ronquinho não vão partir nunca.